A “justificativa divina” de Kátia Abreu para a manutenção da hegemonia de poder

Por Wanderley Fernandes da Cruz – O discurso religioso tem servido para legitimar verdadeiras atrocidades, cometidas sob a justificativa de que se trata de uma batalha do “bem versus o mal”
O artigo “Milícias do pensamento” , de autoria da Senadora Kátia Abreu, publicado em 16 de março de 2013, no jornal Folha de São Paulo, impressiona por dois motivos: pelo besteirol que fala sobre Antônio Gramsci (FOTO) e pelo viés ideológico que revela. O texto, construído em uma oposição semântica do tipo “bem versus mal”, evoca o discurso religioso como sustentação dos argumentos. Esse discurso esteve presente em diversos momentos de nossa história, envolvendo personagens e situações bem específicas. No texto, fica claro que do lado do mal estão Gramsci, o MST e os defensores dos Direitos Humanos. Resta, então, uma questão: quem seriam os anjos do bem? Busquemos a resposta na história, inimiga número um dos corruptos e opressores.
Se, na década de 30, Gramsci era o anticristo, nas formulações da Senadora, quem, nessa época, era o paladino do bem? Vejamos. Gramsci era líder do Partido Comunista Italiano. Morreu em uma prisão fascista em 1937, depois de 11 anos de cativeiro. O juiz que o condenou proferiu uma sentença conhecida:
“precisamos impedir esse cérebro de pensar por 20 anos”
Em vão, pois a maioria de seus escritos se deu dentro da prisão. Ele lutou contra, por exemplo, a reforma educacional do governo, que reservava o “ensino completo” às classes altas e destinava aos pobres outro ensino, de formação profissional. Esse governo, contra o qual lutava Gramsci era o de Benito Amilcare Andrea Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista. Mussolini fechou o legislativo, os órgãos de imprensa, promoveu a corrida imperialista e flertou com o nazismo de Hitler. Ora, observa-se, com isso, que a heresia cometida pelo anjo do mal Gramsci foi insurgir-se contra o anjo do bem Mussolini. Isso faz que o primeiro mereça o inferno, ao passo que o segundo, o paraíso. Pode ser, já que Mussolini aproximou-se dos católicos por meio do Tratado de Latrão.
Na década de 80, no pós-guerra, Ronald Reagan, Presidente dos Estados Unidos, em seu discurso Liberdade Religiosa e Guerra Fria, proferido na Associação Nacional de Evangélicos dos Estados Unidos, referia-se a um “império do mal”. O anticristo da vez, a que se referia Reagan, era a URSS e os países que compunham o Pacto de Varsóvia, tais como Cuba, China, Coréia do Norte e Alemanha Ocidental. A União Soviética, que também cometeu muitos excessos na defesa de um ideal, defendia, em tese, uma economia planificada e a igualdade social, ou seja, o comunismo. Desnecessário dizer que os anjos do bem eram os EUA e os países que compunham a OTAN, como a Itália, Inglaterra, Coréia do Sul e Alemanha Oriental. Os Estados Unidos defendiam o capitalismo, baseado na economia de mercado, na propriedade privada, de que tanto gosta a autora de “Milícia do pensamento”, e na exploração do homem pelo homem. O céu, assim, é o reduto do capitalismo imperialista.
Já em 2002, o então presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush, em seu discurso anual no congresso norte-americano fez menção a um “eixo do mal”, o qual era preciso combater. Compunham o “eixo do mal” a Coréia do Norte, o Irã e o Iraque. Sob o argumento de que os demônios do “eixo do mal” produziam armas de destruição em massa para, em uma trama diabólica, acabarem com o mundo, assistimos aos EUA arrasarem o Iraque, enforcarem Saddam Hussein, provocarem a morte de cerca de cem mil civis, gastarem trilhões de dólares, não promoverem a democracia nem a paz relativa. Como não encontraram nenhuma arma de destruição em massa, acredita-se que o real objetivo dos Estados Unidos era conquistar as reservas de petróleo iraquianas. Mais uma vez, a cruzada contra os ímpios e em nome do Senhor tem como pano de fundo a hegemonia capitalista.
No Brasil, também houve lutas do bem contra o mal. Por exemplo, ao mesmo tempo em que o demônio João Goulart se preparava para anunciar sua carta política, que continha propostas para reforma agrária e combate ao analfabetismo, os ungidos deputados de direita e muitos católicos organizavam, em 19 de março de 1964, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, reunindo quase 500 mil pessoas para pedir a renúncia de Goulart. A batalha do bem contra o mal que ocorreu no Brasil de 1964 a 1988 aniquilou muitos anjos do mal, como Vladimir Herzog, Rubens Paiva e Carlos Marighela. Faço referência a 88 porque tenho a ANC (Assembleia Nacional Constituinte) como marco do fim da Ditadura Militar no Brasil e porque da análise que os estudiosos fazem da correlação de forças que permeou a elaboração da Constituição Federal, extraímos a resposta para a nossa pergunta: quem são os anjos do bem que têm a missão de combater os hereges, defensores dos Direitos Humanos e do MST? Conforme Dom Tomás Balduíno, em Reforma Agrária e Constituição, artigo publicado no caderno de textos da Câmara dos Deputados, em 2009, “tivemos, na realidade, uma Constituição fruto de votantes que, em considerável percentual, e em vários assuntos, votaram em causa própria. O exemplo flagrante disso é a questão da desapropriação da terra. Como poderia o povo esperar outro texto constitucional sobre reforma agrária proveniente de deputados e senadores latifundiários, escravistas, integrantes da bancada ruralista, o ‘Centrão’, ou aliados Destes?” Temos, dessa forma, os anjos do bem de hoje.
Pelo exposto, observa-se que o discurso religioso tem servido para legitimar verdadeiras atrocidades, cometidas sob a justificativa de que se trata de uma batalha do “bem versus o mal”, mas que, na verdade, é uma guerra para a manutenção da dominação de uma classe sobre outra, é a justificativa divina para a hegemonia. Não quer isso dizer que os cristãos coadunem com os ideais fascistas, nazistas, hegemônicos e capitalistas, mas apenas que tem sido recorrente o uso, pelos opressores, da oposição “bem versus mal”, para massacrar os que vão contra seus mandamentos. Dessa forma, a mim, agnóstico, é preferível compartilhar o inferno com Gramsci, Marx, Lênin, Herzog, Marighela, Rubens Paiva, MST e Defensores dos Direitos Humanos, a habitar o mesmo céu que Mussolini, Hitler, Reagan, Bush, Governos Militares e a nobre Senadora.
A senadora não é nobre.
Essa senadora nunca, portanto, jamais será uma pessoa “nobre”. Ela é uma mulher de conteúdo oca e de um partido vazio.